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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Bugatti

Obras de arte sobre rodas

Bugatti tipo 51
Ettore Bugatti passou à história por seus carros
sofisticados, belíssimos, quase irreais
"Seus carros são realmente ótimos, Monsieur Bugatti, mas para um verdadeiro gentleman, somente os Rolls-Royces são adequados."

Quando ouviu essa afirmação em uma reunião social no início dos anos 20, Ettore Bugatti não ficou revoltado como se era de esperar. Uma pessoa obviamente inteligente, Bugatti logo começou a pensar nos motivos que levaram aquela linda jovem bem nascida a dizer tal coisa.


Ettore Bugatti, o criador das lendas, abandonou o curso de artes e foi dedicar-se a sua paixão pelos automóveis

Os Rolls-Royces, apesar de tecnicamente inferiores aos Bugattis, tinham já àquela época qualidade e confiabilidade incríveis. Carros enormes, relativamente velozes e caríssimos, os Rolls eram a escolha preferida da nobreza européia, e portanto a jovem não deixava de ter razão. Bugatti resolveu então que não aceitaria passivamente essa situação. Discussões inúteis não valeriam a pena: Ettore iria construir sua resposta.

O resultado disso foi o tipo 41 "La Royale" ou, como é mais conhecido, o Bugatti Royale. Um dos carros mais lendários já criados, por seu glorioso exagero nas especificações, o Royale conseguiu duas coisas: colocar a Bugatti num patamar acima da Rolls-Royce, como pretendido, e apontar à empresa uma direção que a levaria, em última instância, à falência.
O nascimento da marca   Ettore Bugatti nasceu em 1881 na famosa cidade italiana de Milão. Sim, Bugatti era italiano, apesar de construir sua vida e sua famosa empresa na França. EB nasceu em um ambiente que seria decisivo para seu futuro: uma família de artistas. Embora tivesse nascido, também, com aquela indefinida característica genética que causa o entusiasmo pelo automóvel, o meio artístico em que nasceu e foi criado teria uma profunda influência em sua vida.

Ettore ao volante de um protótipo do Royale, até hoje o mais longo automóvel já produzido
O pai de Ettore, Carlo Bugatti, é até hoje famoso por sua mobília artística. Seu irmão mais novo, Rembrandt, ficou conhecido por suas esculturas de animais fundidas em bronze. A mais famosa delas é o elefante que adornou o enorme radiador do Royale.

Bugatti, desde garoto, apresentou aptidão para a mecânica (uma história repetitiva; qual pioneiro do automóvel não tinha?). Aos 18 anos abandonou a Escola de Belas Artes de Milão, para desgosto do pai, e foi contratado como aprendiz na empresa Prinetti & Stucci, em sua cidade natal. Lá participou de seu primeiro projeto automobilístico, um triciclo motorizado. A partir daí Bugatti passou rapidamente por várias empresas, até que fixou residência na cidade de Molsheim, na Alsácia francesa, onde conseguiu financiamento para desenhar o primeiro Bugatti: o tipo 10 de 1908.

Desde o começo, Bugatti mostrou um senso de estética e proporção até hoje impressionante. Todos os componentes de seus veículos deviam, antes de funcionar bem, ter uma aparência impecável. Os motores sempre foram construídos em perfeitas formas geométricas, sem que nenhuma parte visível ficasse sem acabamento. Até os fundidos eram usinados para um acabamento impecável, mesmo nas superfícies não-funcionais.


O tipo 35, primeira obra-prima de Bugatti: rodas de alumínio com freios integrados, motor de 8 cilindros em linha e 3 válvulas para cada um

Carros de competição se tornariam seu forte, visto que Ettore logo descobriu que os pilotos pagavam qualquer coisa por um veículo competitivo. E, dotados de pára-lamas e pára-choques, esses modelos de competição se tornavam excelentes carros de passeio para os mais abastados.Os clássicos imortais   Um dos carros mais conhecidos de Ettore foi o imortal tipo 35, sua primeira obra-prima e um dos carros de proporções mais perfeitas já criados. Suas magníficas rodas de alumínio ficavam fora da carroceria, uma delicada e minimalista criação que escondia completamente seus componentes mecânicos e culminava com o hoje famoso radiador em forma de ferradura.

O interior de um tipo 35 fabricado em 1926. Bom desempenho e um primoroso eixo dianteiro tornaram este Bugatti um sucesso nas pistas

E não era só belo: equipado com um motor de oito cilindros em linha -- pela primeira vez na marca --, contava com comando no cabeçote e três válvulas por cilindro (uma de admissão, duas de escapamento) e girava extremamente alto para sua época. As rodas eram integradas com os tambores de freio e, por sua construção em alumínio, eram leves e dissipavam bem o calor. Foi o primeiro Bugatti com freios nas quatro rodas, sendo os dianteiros de acionamento hidráulico. O câmbio permitia engates rápidos e precisos, a estabilidade era lendária.

O eixo dianteiro do tipo 35 se tornaria uma tradição Bugatti: uma peça de seção circular de diâmetro variável, forjada, era então usinada para que o feixe de molas passasse através dele. Caríssima, mas também bela e excelente em sua função: uma criação de um engenheiro-artista, como o carro que equipava.

Sua estréia foi no GP de Lyon, na França, em 1924 com esta unidade. Depois vieram 1.800 vitórias

O tipo 35 teve longa carreira, de 1924 até 1931. Durante esses anos, 600 unidades foram construídas com versões do oito-em-linha que iam do 1,5-litro de aspiração natural até 2,3-litros com compressor mecânico. Venceu 1.800 corridas, tendo feito sua estréia no GP da França de 1924, quando a Bugatti se apresentou com sete veículos e 45 toneladas de peças de reposição.

Foi o transporte preferido dos playboys dos anos 20 (Isadora Duncan morreu em um deles, quando seu cachecol se prendeu a roda em movimento) e transformou a Bugatti numa marca respeitada e admirada.


Nos anos 20, um tipo 35, carro feito para as competições de GP (a F1 da época), com carroceria fechada para o uso nas ruas. Como fazer o mesmo com um F1 de hoje?


E então houve o Royale. Desenhado para ser usado pelas cabeças coroadas da Europa, carregava sua mascote paquidérmica no radiador por um bom motivo: era um carro gigantesco. Media 4,32 metros de entreeixos -- o que um Astra Sedan tem de comprimento... O carro pesava mais de três toneladas e custava o equivalente a três Rolls-Royces Phantom II. Nenhuma de suas peças recebia banho de cromo. Ettore achava que tal metal era vulgar demais para os carros, substituindo-o por banhos de prata.

O Royale era o exagero sobre rodas: 12,7 litros de cilindrada, mais de 6 metros de comprimento e cerca de 3 toneladas
Seu motor, um oito-em-linha (desenvolvido a partir de um 16-cilindros aeronáutico), começou com 14.726 cm3 de cilindrada e 300 cv de potência a apenas 1.700 rpm. Isso mesmo, 14,7 litros! A partir do segundo chassi, os motores tiveram sua cilindrada reduzida para "discretos" 12.763 cm3 e a potência para 278 cv. O motor media 1,42 metro de comprimento, usava 23 litros de óleo lubrificante e 68 litros de água no radiador. O câmbio era de três marchas, com a segunda direta (1:1) e a terceira overdrive.

O Royale foi um divisor de águas na história da empresa. Até então, os Bugattis eram carros de competição modificados para uso nas ruas e criados conforme os desejos de Ettore. A partir dele, a influência de seu filho mais velho Jean começou a aflorar, até que se tornasse a principal voz na criação dos veículos, como no lendário tipo 57, um carro que Jean desenhou de cabo a rabo.
Cada uma das seis unidades recebeu uma carroceria distinta, como este Weinberger Cabriolet. A quebra da bolsa em 1929 abalou as vendas desse Bugatti caríssimo, que custava como três Rolls-Royces
Em 1927, um ano após a apresentação do Royale, a Bugatti inaugurava seu departamento próprio de carrocerias, onde Jean criaria obras nunca antes vistas. O Royale provou ser dificílimo de vender, situação que piorou com a quebra da bolsa de Nova York em 1929. Apenas seis carros foram criados em seis anos, de 1926 a 1931, mas três ficariam por décadas com a família Bugatti.

O primeiro a ser vendido (chassi 41111) foi o lendário roadster encomendado pelo milionário francês Armand Esders. Com suntuosos 6,23 metros de comprimento, o Esders Roadster foi uma obra-prima de estilo e proporção. Inspirado no tipo 55, Jean criou um carro onde os pára-lamas se uniam em uma única linha, sem nenhuma parte reta em toda a lateral. A pedido de Esders, o carro não tinha capota nem faróis: seria usado apenas em dias claros, em ocasiões especiais.
O primeiro Royale, feito para o milionário francês Esders, não tinha capota nem faróis: seria usado apenas em dias claros e ocasiões especiais
A carroceria original foi trocada pelo segundo proprietário. O hoje chamado Coupé de Ville Binder pertence à coleção Harrah, juntamente com o último Royale, o de chassi 41150, que permaneceu nas mãos da família Bugatti até 1951. Mas uma reprodução exata do original ainda pode ser vista no Museu Nacional do Automóvel de Mulhouse, França. Apreciá-lo ao vivo é uma experiência única e recomendável.

Em 1931, Ettore já havia deixado a operação da fábrica sob a responsabilidade de Jean, então com apenas 22 anos. Quando uma greve estourou em 1936, Ettore, um homem que dirigia sua empresa como um senhor feudal, ficou extremamente abalado, a ponto de abandonar Molsheim e se exilar em Paris, onde passou a se concentrar no lucrativo negócio de trens.

Os trens Bugatti são uma história a parte: eram vagões integrados à locomotiva, altamente aerodinâmicos e propelidos por uma combinação de dois ou quatro motores de oito cilindros em linha do Royale. Bateram vários recordes de velocidade, mantiveram-se em operação até 1958 e garantiram a sobrevivência da empresa durante a crise dos anos 30.

O 57 Ventoux: motor com câmaras hemisféricas e duplo comando no Bugatti mais vendido entre os clássicos -- 710 unidades no total do tipo 57
O elegante tipo 57   Enquanto isso, Jean ficou livre para inovar em "sua" fábrica. Seu tipo 57 é provavelmente o melhor dos Bugattis clássicos -- e o mais vendido, 710 unidades. O motor continuava na clássica configuração oito-em-linha, mas agora contava com duplo comando de válvulas no cabeçote e câmaras de combustão hemisféricas. Com 3,3 litros de cilindrada, era muito mais eficiente que o tradicional três-válvulas.

A versão 57S era mais baixa e com chassi mais curto, e a 57SC contava com compressor mecânico para atingir potências de até 230 cv. Lubrificação por cárter seco, amortecedores telescópicos e, nos últimos modelos, freios hidráulicos eram novidades do carro.
Sobre o chassi 57SC Jean criaria obras de arte como o Atlantic, cujo destaque era a "espinha dorsal" por toda a extensão do teto
As maiores e mais influentes criações estilísticas de Jean seriam criadas sobre o chassi 57SC. A mais famosa foi o 57SC Atlantic, com sua inconfundível "espinha dorsal", uma aba de junção rebitada em toda a extensão do teto. Jean inicialmente queria uma suspensão independente na dianteira, mas Ettore vetou-a pela aparência, em favor do tradicional eixo dianteiro usinado. A liberdade de Jean não era completa...

Outro fato curioso: o cabeçote do tipo 57 (bem como o do tipo 50, que veio antes) era na verdade uma cópia do que equipava o Miller 91. Jean comprou dois exemplares desse revolucionário carro de competição americano, com tração dianteira, para estudos. Harry A. Miller, o criador do carro, era por coincidência considerado o "Bugatti dos EUA", por ser também um engenheiro-artista.
Um tipo 57SC Atalante, uma das carrocerias mais belas de Jean Bugatti. Acabamento interno e externo impecáveis
Os dois Millers 91 foram resgatados da fábrica falida na década de 50 pelo historiador americano Griffith Borgenson, que os restaurou e doou ao Instituto Smithsonian de Nova York, de cujo acervo fazem parte até hoje.
O fim   Quando Ettore começou a criar carros, em 1899, Enzo Ferrari era um menino. William Lyons, da Jaguar, só criaria seu primeiro carro-esporte no final dos anos 30, quando a Bugatti já era uma marca de tradição. Mas em comum com esses dois pioneiros, uma infeliz história: todos criaram filhos com a intenção de torná-los seus sucessores. E, tragicamente, todos os três perderam esses filhos antes que pudessem fazê-lo de modo completo.
O motor de oito cilindros em linha, duplo comando e compressor do tipo 57SC. Note o acabamento e a beleza das peças. Uma verdadeira obra de arte, exposta como tal
Jean Bugatti morreu em 1939, com apenas 30 anos de idade, em um acidente ao testar uma versão de seu clássico tipo 57SC. Ettore nunca se recuperou dessa dor. Em 1947, morreu com 66 anos. Outro pioneiro, este contemporâneo de Ettore, também criou seu herdeiro e sucessor mas felizmente não o perdeu: Ferdinand Porsche. Seu filho Ferry praticamente criou a marca Porsche e foi instrumental em sua sobrevivência como empresa independente. A Ferrari é hoje da Fiat, e a Jaguar, após vários donos, da Ford.
A Bugatti fechou as portas em 1951, efetivamente sem direção. Os outros herdeiros de Ettore (Roland e as duas filhas, L'Ébé e Lidia) tentaram continuar a fábrica, criando o tipo 101 (um 57 modificado), de 1951, e o 251 de competição, de 1956, com motor central-traseiro, mas sem êxito. O 101, apesar de seguir as linhas dos cabriolets de sua época, possuía o desenho da dianteira nitidamente inspirado nos primeiros modelos de competição.

A trajetória da Bugatti e seu fundador forma um oposto exato da de outro pioneiro: Henry Ford. Enquanto Ford mostrou o caminho para as pessoas que realmente querem ganhar dinheiro fabricando automóveis, criando a produção seriada de carros idênticos, Bugatti mostrava o outro caminho, infelizmente de menor sucesso na maioria dos casos: a produção de obras de arte ambulantes, imagens vivas da imaginação de um criador obstinado a realizar seu sonho sobre rodas, não importando o preço que um dia viria a pagar por isso.
Os carros de Bugatti passaram à história como uma verdadeira coleção de obras-primas, cuja perfeição estética, para muitos, jamais será igualada
Ninguém deve menosprezar a importância histórica de Henry Ford. Contudo, se observarmos em retrospectiva, veremos que alguns Fords -- assim como modelos de fabricantes com a mesma proposta -- são muito interessantes, outros até memoráveis, mas a maioria é no máximo banal ou, em alguns casos, medíocre. Já qualquer Bugatti, mesmo o pior deles, é como uma obra de arte: emocionante, inesquecível e com a marca inconfundível de seu criador.
Texto: Marco Antônio Oliveira - Fotos: divulgação

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